Ontem folheamos mais uma página de #versoREverso da obra de arte, a
nossa rúbrica de domingo, no capítulo da Ourivesaria com o relicário do
século XVI (MNMC6089), que contém uma relíquia óssea de um dos Mártires
de Marrocos e que inspirou Isabel Pires no poema ‘Fala do Relicário dos
Mártires de Marrocos’, declamado por Luís Moura Ramos.
‘Fala do Relicário dos Mártires de Marrocos’
(Henrique Domingues e António Domingues)
Eu me confesso um assassino.
Eu aprisionei este osso sepulcral
que ouviu na morte não sei que exclamação.
Fizeram-me íntimo dos braços que com raiva
levantaram o sabre e o despenharam
no abismo – e assim fabricaram mártires
que pingam sangue morto. E vi desprezo.
Eu adivinhei as mãos ambas que agarraram
este pedaço sangrento da memória
e o apartaram da cova que era o seu destino.
Fui cúmplice de tudo: do medo e da coragem,
da viagem no mar Mediterrâneo, do talhe
em cabochão das várias pedras. Fui banhado a oiro
para que este osso ficasse prisioneiro.
O Lorvão é escuro e come os corações
constantemente. A nave do mosteiro ecoa,
e as sandálias apressadas das noviças
nunca mais chegavam para me ver.
Catarina d’Eça, a abadessa, fez um gesto
e olhou-me muito tempo com triunfo.
E eu, um assassino. Sou o guardião
de um braço de homem,
não posso estar inocente.
O cheiro adocicado deste osso
Está aqui sempre.
Isabel Pires
Boa visita!